sábado, 31 de maio de 2008

Achados e Perdidos - versão completa

Texto apresentado como trabalho de conclusão do Primeiro Módulo (A Jornada do Herói) da pós em Formação de Escritores.

Depois de algumas horas na fila, com as mãos trêmulas e geladas e o coração batendo descompassado, Débora tenta esconder o suor frio que insiste em rolar pela sua testa e com um fio de voz se dirige à esquálida figura atrás do balcão.
- Moça, perdi minh’alma. Por acaso tem alguma sobrando por ai?
“Cada louco que me aparece por aqui” pensa Isabel. “Ainda bem que é véspera de feriado e o Jackson hoje vai vir me buscar pra me levar bem longe desse inferno.” Dá mais uma tragada profunda na bituca de cigarro presa entre seus dedos com unhas muito compridas, como garras, pintadas de um vermelho quase negro. Solta a baforada e responde à figura quase humana do outro lado do balcão.
- Não meu bem. Nem a sua nem a de mais ninguém.
Débora sai da estação lentamente, claudicante, apoiando-se na parede e lembrando daquela maldita noite. “Onde eu estava com a cabeça”...
Alguns dias atrás, em estado de fúria, Débora clamou a Deus que a matasse, mas que lhe desse a oportunidade da visita aos entes queridos. Afinal, Deus pode fazer tudo o que bem entende na hora que melhor lhe aprouver.
“Não, não pode ser. Isso só pode ser coisa do capeta. Mas isso seria muito clichê. Será que fui eu que me livrei dela como quem se livra de um pedinte na janela do carro em sinal fechado? Será que ela ficou presa no mundo comum? Porque essa história de mundo especial, cliente especial, cheque especial. Tudo isso é uma farsa.”
Completamente em transe, Débora escorrega sem perceber no que, bate a cabeça e cai na calçada. Já está de noite e uma leve garoa começa a cair pela cidade. Os transeuntes não se incomodam com o corpo estendido no chão.
“Essa aí deve estar drogada”, pensa a maioria que por ventura atravessa a rua e se depara com a cena. “Qual seria a razão desse completo abandono do seu próprio eu”, refle um senhor em passos rápidos rumo ao metrô.
Enquanto isso Débora finalmente volta a se sentir como aquela menina que fora outrora. Sente-se leve, livre, quase feliz.
“Será que consegui voltar ao mundo comum? Não consigo abrir os olhos,mas ouço passos. Quem será? Será que resolveram devolver minh’alma? Não consigo me mover. Sinto frio. Será que morri?”
Débora se deixa levar pela sensação inebriante que lhe domina todos os sentidos. Mal sabe ela que do outro lado da rua alguém observa minuciosamente cada um dos seus movimentos ou a fala deles.
- Alô, Vini? É o Rato. Tá com a “besta” na área? Então me encontra agora na Amaral e avisa o Alemão que pintou uma encomenda. De quanto tempo você precisa? Não vai dá não. Você tem cinco minutos. Dá seus pulo mano.
Arrumando a gola da jaqueta de couro, Eduardo dá mais uma tragada no cigarro antes de atirá-lo ao chão e pisar em cima. A passos largos atravessa a rua e se ajoelha ao lado do corpo estendido na calçada. Ajeita o cabelo da morena que tantas vezes o excitou. Subitamente alguém lhe arranca de seus devaneios.
- E aí amigo, precisando de ajuda? Quer que chame o resgate?
- Não, obrigada. Não é nada grave. Minha namorada é hipoglicêmica e passou o dia todo sem comer. Você sabe o que as mulheres fazem para se manter em forma... Já pedi para meu irmão vir buscar a gente, obrigada.
O desconhecido faz um leve aceno com a cabeça, gira nos calcanhares e some na noite. Antes de conseguir retomar suas memórias Eduardo é ofuscado pela luz de um farol de milha. A besta havia chegado. Vini ajuda Eduardo a colocar o corpo de Débora no banco de trás. Depois, cobrem o corpo, fecham a porta e saem com o carro.
- E aí maluco, onde você descolou a morena?
- Vini você não vai acreditar. Tava atravessando a cidade depois de tretar lá com o Zeca Malta sobre aquela grana que eu peguei emprestada com ele quando dei de cara com a vadia parecendo uma barata tonta do outro lado da rua. De repente, ela despencou na calçada. Já falou com o Alemão?
- Fica tranqüilo que ele tá avisado. Deu boa noite pra princesa?
- Tá me estranhando?! Dez anos na enfermaria do PS de Itaquera deixam qualquer um habilidoso. Assim que encostei nela apliquei uma dose de tranqüilizante. Pode ir com calma pra não chamar atenção pra besta.
- Não vai dá não. O Alemão tá no turno só até as dez.
- Merda. Justo hoje...
165 quilômetros depois a besta atravessa os portões do hospital veterinário. Duas piscadas no farol e Alemão surge com a maca para transportar a morena, encolhida, coberta por um lençol, tal e qual animal morto.
- E aí pessoal, o que vai ser? Rim ou fígado?
- Saca logo os dois porque eu tô precisando de grana pra dar um cala-boca no Zeca Malta.
Duas horas depois os três estão de volta na besta. Desta vez rumando de volta em direção à cidade.
- E agora Rato, onde a gente vai deixar a morena?
- Vai lá pro PS de Itaquera. Lá nos fundos tem uma entrada que é só de funcionários. A essa hora a coisa tá bombando por lá. Ninguém vai reparar em dois caras entrando amparando uma mulher desmaiada. A gente deixa o corpo dela na espera e sai.
Dito e feito. Algumas horas depois Rato e Vini entram novamente na besta e somem na noite. Com a cabeça escorada na parede, Débora permanece sentada na cadeira do PS. Só depois do sangue ensopar o vestido e começar a pingar pelo chão é que a moça da limpeza chama a atenção de um enfermeiro que corre de um lado para o outro do PS, tentando dar conta de tantos atendimentos.
- Tem uma moça ferida lá na espera. Vai logo lá que tá vazando sangue pelo chão e eu não vou ficar limpando não.
Ismael puxa Dagmar pelo braço e dá a ordem.
- Limpar você pode até não limpar, mas vai me ajudar a colocar a moça na maca agora. Quem está com ela?
Dagmar faz um não sei com a cabeça.
- Vê se ela tem documentos?
Dagmar tateia, mas não encontra nada. Mais uma vez o corpo de Débora é carregado, cortado e costurado. “Mais uma vítima de roubo de órgão”, pensa Ismael. “Só essa noite foram quatro.”
Já é dia quando Débora desperta. A dor lancinante na barriga e o cheiro de éter no ar lhe dão náuseas. Abre os olhos e atônita percebe que está em uma espécie de hospital. Olha de uma lado para o outro mas só vê pessoas gemendo e dormindo. “Onde será que estou?”, pensa. Sem forças, chocada com a cena e com muita dor acaba desmaiando. Horas mais tarde acorda novamente. Desta vez com o barulho do telefone. Sem abrir os olhos, Débora tateia até encontrar o aparelho no criado-mudo.
- Alô.
- Porra Débora onde foi que você se enfiou?
- Quem.
- Como assim quem. Sou eu, o Rubens. Esqueceu que a gente marcou de jantar com os Toledo essa noite?
Débora dá um pulo e senta na cama. Instintivamente levanta a blusa e apalpa a barriga. “Que alívio. Tudo não passou de um terrível pesadelo.”
- Alô, Débora?
- Desculpa Rubens, mas hoje eu não estou me sentindo muito bem.
- E por que não avisou antes? Merda.
Antes que Débora pudesse falar qualquer coisa ouve o sinal de que a ligação havia sido encerrada. Sentindo-se estranhamente aliviada e até mesmo feliz vai para o chuveiro e diz para si mesma: “Esta noite eu só quero um banho quente e a companhia de um bom livro.”

6 comentários:

Lu Faria dos Anjos disse...

Renata,
Muito interessante você estar chamando a atenção para este tema.
Este é outro crime que deve ser seriamente combatido, antes que seja tarde demais e se torne corriqueiro como tantos outros. Parabéns por ter abordado algo tão importante!
Beijos!

SORAYA FELIX disse...

Renata,
Já gostava dos seus textos na Oficina da Editora Segmento, mas este.. supera a tudo o que já fez.
Parabéns! Tema adequado, sequencia de história instigante e um final inesperado.
Beijos e continue este grande escritora.

Ursulla Mackenzie disse...

Oi Renata:
Novamente parabéns pela história!!!já fico por aqui aguardando uma continuação ainda mais surpreendente!!!

Olga disse...

Renata, o texto é indiscutivelmente gostoso de ler e faz a gente seguir um caminho só pra surpreender lá no final. Agora, esse começo que você criticou na aula: ai que inveja!!!Queria ter escrito isso! É diferente, inesperado, quem imaginaria alguém procurando tão racionalmente pela alma perdida! É maravilhoso! Adorei (com inveja,mas adorei!)!

Eduardo disse...

Olá Renata:

Os sonhos, como são complicados. Que alívio setimos qundo acordamos de um pesadelo.
Muito interessante e atual o assunto abordado. Faço votos para que essa coisa não se torne comum.
Infelizmente qualquer um de nós está sujeito a ter um treco qualquer na rua ou parar num hospital manobrado por uma quadrilha dessa.
Até que ponto vai crueldade humana?

Claudia disse...

Renata, gostei muito do seu texto. Agora, o início, a mulher procurando a própria alma perdida, é maravilhoso. Isso valeria um texto. É uma imagem lindíssima.
Beijos, Clau*